Considerado por muitos como um dos mais ilustres representantes da corrente literária do Simbolismo em Portugal, a figura de Camilo Pessanha destacou-se de outras personalidades suas contemporâneas pelo seu carácter multifacetado, o qual se reflectiu não apenas no teor das suas declarações a propósito da vida social e cultural da metrópole (Portugal), da sua relação com as colónias – com particular destaque para Macau – mas sobretudo pela sua busca de sistematização de um saber relativo aos aspectos característicos da cultura e das artes chinesas e pelo exercício das funções de professor do liceu em Macau e na magistratura. Apesar de se constituir uma tarefa algo complicada resumir em linhas breves a vida e obra de uma personalidade cuja actividade se estende por múltiplos e distintos campos da vida intelectual e profissional, pretende-se aqui promover uma reflexão sobre o percurso pessoal de Pessanha sobretudo em tudo o que se relacione com entrecruzamento das suas diferentes actividades, e isto porque me parece de todo desajustado analisá-las autonomamente, na medida em que todas se encontram intimamente conectadas. Acima de todas as coisas, uma análise conjunta da vida profissional, intelectual e social de Camilo Pessanha, permite-nos aferir com maior clareza aquilo que seriam as suas preocupações e os seus anseios pessoais sobre temas relacionados com a vida política, social, económica e cultural de Macau, do seu posicionamento para com a situação política de Portugal, dos seus medos e dos seus afectos. Camilo de Almeida Pessanha nasceu em1867 na cidade de Coimbra, num período político da história portuguesa amplamente marcado por uma sucessão de acontecimentos decorrentes das revoluções liberais e, posteriormente pelo advento da “Questão Coimbrã” que grosso modo, se caracterizou por um confronto ideológico entre membros de gerações académicas distintas. Não se tratou de um episódio pontual já que o fluxo de ideias, perspectivas analíticas e de interpretação dos fenómenos sociais emergentes em outros pontos da Europa contribuíram para a consolidação do papel que a denominada “Geração de 70”, desempenhou no plano intelectual e social da sociedade portuguesa de então. Tal cenário, torna-se aqui tanto ou mais importante se pensarmos na centralidade que a emergência de novos quadros de conceptualização da realidade desempenharam no espírito de muitos que como Pessanha davam os primeiros passos rumo à maioridade. Apesar dos méritos e das virtudes que muitos apontam à sua pessoa, quer como poeta, mas também como professor e magistrado, Pessanha era por muitos considerado como um indivíduo pouco dado à participação em eventos de carácter social e, mais ainda ao “cultivo” de relações de amizade duradouras. Neste particular, quer-me parecer que um dos principais factores que justificariam esta sua dificuldade de interagir socialmente se encontravam na sua infância atribulada, amplamente determinada por estadias curtas em diferentes regiões de Portugal, acompanhando o seu pai que exerceu funções de magistratura em inúmeras comarcas nacionais. Deste modo, só no seguimento do seu ingresso na Universidade de Coimbra no curso de Direito no ano de 1884, é que se criaram condições para o fomento de relações de amizade mais intensas. O seu ingresso na faculdade constitui-se assim num dos principais marcos na sua história pessoal, não apenas no aspecto profissional, mas sobretudo para o desenvolvimento da sua “veia” poética e da sua apetência para a vida boémia e para os vícios que lhes seriam inerentes. Terminado o curso em 1891, Pessanha iniciou a sua actividade como subdelegado do procurador régio em Mirandela, vindo mais tarde a exercer funções no âmbito da advocacia em Óbidos. Posteriormente candidatou-se a um concurso para provimento de uma vaga para professor no Liceu de Macau. Neste particular, a península de Macau constituiu-se para Pessanha como uma espécie de porta de entrada para uma “realidade” que apesar de há muito o fascinar, encontrava-se em franco declínio económico e político. Por outras palavras avizinhava-se a queda abrupta de um regime político decadente, incapaz de fazer face aos problemas que sucessivamente lhes foram sendo colocados pela Guerra do Ópio, pelo desvio do comércio de Cantão e, finalmentepela derrota guerra sino-japonesa. Entre 1896 e 1899, Pessanha regressou a Portugal primeiro por motivos de saúde e depois por questões do foro profissional. Pelo meio, nasceu o seu primeiro e único filho fruto de uma relação que manteve com uma mulher chinesa com quem vivia. Pessanha regressou uma terceira vez a Portugal em 1905, novamente por questões de saúde (foi-lhe diagnosticada uma anemia palustre) e por aí se manteve até 1909. O ano de 1915 assinala a data da sua última estada em Portugal, onde permaneceu predominantemente em Lisboa, frequentando diversos cafés na zona do Rossio e a casa de Ana Castro de Osório, sua grande amiga. São múltiplas as razões invocadas para justificar o “exílio” voluntário de Pessanha, em Macau. Para além das paixões não correspondidas de Madalena Canavarro e de Ana de Castro de Osório, invocam-se ainda como factores justificativos para a sua “fuga” de Portugal continental, o seu desagrado perante a conjuntura política da recém-proclamada república portuguesa e a sua dependência do ópio. Figura “curiosa” para uns, “exótica” e “ridícula” para outros, a verdade seria a de que Pessanha, quer pelos seus trajes como pela sua aparência dificilmente passava despercebida. Apesar de pouco estimado no seio da sociedade colonial macaense, fosse pelas críticas mordazes que expressava relativamente ao quotidiano da metrópole (Portugal) e, mais ainda, pelo seu grau de interacção com as colónias, fosse pelas atitudes, apelidadas por alguns de insolentes, entretanto assumidas, a verdade era a de que se tratava de uma personagem muito conhecida e estimada entre a comunidade chinesa. Pessanha era tido como um indivíduo de estatura magra, rosto fino, olho direito imóvel e uma barba negra, ligeiramente comprida e mal aparada. Consequência lógica das opiniões e das reacções que a sua aparência suscitava no meio social de então, facilmente depreendemos o azedume e um certo distanciamento que marcavam o seu comportamento quotidiano. Em Macau, Pessanha residiu na Calçada do Tronco Velho, tendo-se posteriormente transferido para a Rua da Praia Grande, 75, onde dispunha de um espaço mais amplo para usufruir do seu museu particular. Era na sua residência que Pessanha recebia todos os seus visitantes, pelo menos aqueles que lhe seriam mais próximos. Um dos elementos que melhor retractam o seu temperamento isolacionista era o espírito crítico que não bastas vezes adoptava face aos factos e às personalidades que compunham o quotidiano de Macau. Tal facto, associado à enorme proliferação de peças de arte com as mais diversas formas, utilidades e feitios, fariam de Pessanha um indivíduo mais próximo da comunidade chinesa do que das normas e dos valores que presidiam à conduta de um qualquer cidadão ocidental. Ao que parece, Pessanha nunca foi muito dado a grandes arrumações, o que seria comprovado pelo estado “caótico” do seu quarto, repleto de livros, jornais, processos de tribunais entre outros documentos. Quiçá motivada pela degradação progressiva que o ópio provocou na sua personalidade, são inúmeros os relatos sobre Pessanha recebendo os seus convivas, sem qualquer preocupação com a sua imagem ou ainda com a arrumação da sua casa. Pessanha dedicava muito do tempo à prospecção de peças e obras de arte chinesa do valor mais ou menos evidente. Quanto ao seu passatempo de coleccionador de peças de arte chinesas, a colecção de Pessanha era um misto de obras por si consideradas como sendo representativas da pintura, escultura, caligrafia, ourivesaria e vestuário chineses, recolhidas um pouco ao sabor das suas capacidades económicas e também das suas preferências pessoais. O seu valor não advinha pois tanto da singularidade das peças adquiridas, mas sobretudo da sua representatividade quanto às tendências e às correntes estéticas dominantes num determinado período da história. No quadro das suas actividades de prospecção e de aquisição de obras de arte chinesas, Pessanha procurava o seu enquadramento histórico sociológico. Por outras palavras, a arte não seria para Pessanha uma mera manifestação das preferências artísticas de um povo, mas sobretudo um testemunho da sua história, em particular das tendências que predominaram num determinado período da mesma. A arte seria em última instância, uma das múltiplas manifestações do carácter específico da identidade de um povo. Neste particular e, apesar de ostentar um conhecimento relativamente alargado sobre inúmeras temáticas, não podemos considerar Pessanha um“especialista”, no sentido em que se tratava de um saber adquirido ao sabor das circunstâncias sem qualquer preocupação de delimitação dos temas ou ainda da aferição da sua pertinência para o aprofundamento dos debates. Neste caso e, provavelmente associado ao seu relativo desconhecimento do real valor das peças adquiridas, Pessanha dispendia uma larga fatia das suas economias em peças ou artefactos de valor meramente residual. Apesar de se revelar um admirador confesso da arte chinesa, Pessanha não podia ser tido como um defensor incondicional de todas as suas crenças e práticas, isto se tivermos em conta a postura que assumiu face às mortes de chineses na greve de 1922. Do meu ponto de vista, o apreço ou a admiração de Pessanha pelas artes e pela cultura chinesas, devem aqui ser entendidos como a expressão de uma estratégia de busca de consolo, face ao desencanto sentido perante a vida social de Macau e de Portugal. O seu desencanto para com o estado “decadente” da vida social em Portugal justificava-se, em larga medida, pela evidência que seria para si o facto da ascensão social se processar, não pelos méritos ou pelas capacidades intelectuais de um indivíduo, mas sobretudo pelo seu prestígio social e pelo daqueles que eram parte integrante da sua rede de relações. Acima de todas as coisas, Pessanha procurava por todos os meios demarcar-se daqueles que em detrimento da elevação do “bom” nome de Portugal privilegiaram a acumulação de riquezas e outros benefícios pessoais. O que nos leva a crer que contrariamente às opiniões veiculadas por alguns sectores da nossa historiografia, haveria não apenas uma enorme discrepância entre a vida social das colónias e a da metrópole (Portugal), mas sobretudo e, salvo algumas raras excepções, o quotidiano das primeiras não dependia de um qualquer plano político de cariz mais alargado. De uma outra perspectiva, a sua tendência para se isolar ou abstrair do mundo envolvente pode aqui ser perspectivada como uma expressão de uma propensão para a valorização do seu eu em detrimento de outros tidos como“burros” ou “ignorantes”. Vai daí, Pessanha não seria um indivíduo particularmente estimado, não apenas em virtude da sua postura agressiva que adoptava na defesa dos seus pontos de vista, mas sobretudo pelo carácter desconsiderante de todas as opiniões por si formuladas a propósito de todos os que se distinguissem em áreas em que lhe fossem reconhecidos méritos. Como tudo na vida, pessoas houve que discordavam do “mito” que se criou em torno dos méritos de Pessanha, em particular da sua vocação para a poesia, ou ainda pelo seu profundo conhecimento sobre os meandros da arte chinesa. Em primeiro lugar, arguia-se que Pessanha não podia nunca ser considerado como um legítimo conhecedor da arte chinesa, dado que não possuía nem livros técnicos que o elucidassem sobre as suas características principais, como nunca conviveu ou sequer procurou alguém que fosse considerado um especialista na temática e, muito menos teria sequer visitado as melhores lojas da especialidade. Em segundo lugar, a sua colecção para além de se compor exclusivamente de louças e de pinturas, não dispunha de uma única peça considerada de valor. Já enquanto poeta, criticava-se sobre tudo a inobservância por algumas das mais elementares regras de metrificação, bem como da sua incapacidade de expressar qualquer noção de beleza. Neste particular, um dos elementos que melhor definem a poesia de Pessanha seria o seu carácter excessivamente perfeccionista, o qual terá estado na base da sua escassa produção literária. O mesmo será dizer que a sua escassa produção poética resulta em larga medida da sua obsessão pela originalidade. Para indivíduos como Silva Mendes, ser-se poeta consistia em algo mais do sentir emoções“belas”, havia sobretudo que evidenciar capacidades para as reproduzir. Apesar da sua especial predilecção pelo conhecimento dos meandros culturais e pela colecção de obras de arte chinesas, Pessanha destacou-se no exercício das profissões de professor de liceu e de advogado. Assim é sem qualquer surpresa que o tom crítico é substituído por uma tónica marcadamente apologética. Enquanto professor, são múltiplas as referênciasàs suas capacidades de explanação das matérias leccionadas, indo não bastas vezes muito para além dos conteúdos dos próprios manuais, procurando não bastas vezes fazer ver aos seu alunos que os factos sociais relativos a uma determinada civilização apresentam múltiplas correlações entre si e, nessa medida não podiam ser estudados isoladamente. Pessanha encarava a profissão de professor como se uma “arte” tratasse no sentido em que a sua “obrigação” seria a de dotar os seus alunos de um conjunto de ferramentas de cariz epistemológico que lhe permitissem ir mais além da mera actividade de memorização de uma série de datas e de factos sem qualquer preocupação prévia de enquadramento sociológico, como político e económico. Acima de todas as coisas, Pessanha pretendia inculcar nos seus alunos o hábito de reflectirem por si mesmos sobre os factos e os acontecimentos da história, independentemente do prestígio ou do estatuto de quem lhos apresentava. Privilegiava pois um tipo de relação com os estudantes de grande proximidade e interacção, naturalmente promotora do debate e da discussão das ideias. Finalmente e, no tocante à sua opção pela magistratura, ela surge nos seus planos pessoais, como uma consequência lógica da sua admiração pela carreira em ascensão do seu pai. São múltiplas as referências elogiosas ao exercício das suas funções, destacando-se sobretudo pelo seu amplo conhecimentode matérias relacionadas com o direito penal eprocesso criminal. Por outras palavras, salientava-se que apesar de não ser um profundo conhecedor dos diplomas legais, Pessanha destacava-se sobretudo pela sua capacidade de engendrar as melhores soluções, mesmo para as circunstâncias juridicamente mais adversas. Não obstante e, por muito que nos queiramos abster desse facto, o vício do ópio constituíu-se para Pessanha num dos principais elementos que marcavam o ritmo da sua vida, na medida em que a dada altura a sua lucidez e o seu espírito crítico estariam condicionados pelo consumo prévio de uma dose da referida droga. Desde que se estabeleceu em Macau até à data da sua morte, Pessanha foi um ávido consumidor de ópio, hábito que muito provavelmente foi uma das principais causas da degradação progressiva do seu estado de saúde. Reinaldo Ferreira que com Pessanha conviveu durante uma das suas últimas passagens por Portugal, em período de licença, referiu que uma das consequências mais evidentes da sua dependência do ópio seria o seu mais do que evidente descontrolo emocional. Neste particular e, apesar deter vivido parte da sua vida em Macau, foi na Europa, mais especificamente em Paris que Pessanha contactou pela primeira vez com o ópio e com os ambientes que rodeavam os estabelecimentos de venda e consumo da referida droga. Enquanto se manteve em Paris, Pessanha terá sido um frequentador assíduo das “fumeries”, até que se fartou de viver uma vida de clandestinidade na capital francesa encetando deste modo uma série decontactos que lhe conferiram a chance de vir a exercer funções ao nível do ensino e da magistratura. A sua opção por Macau correspondia inteiramente às suas expectativas de aquisição fácil e consumo do ópio sem que para tal estivesse sujeito a cair nas malhas da justiça por práticas ilícitas. Assim, o que começou por ser uma experiência não propriamente motivada pela curiosidade, mas antes por um certo fascínio em romper com a norma social, culminou numa situação em que o consumo de ópio se transformou numa prática“tão” banal como o seriam os actos de comer ou dormir. Não admirou pois que na hora da sua mortetivessem sido poucos aqueles que lamentaram o seu desaparecimento: Pessanha morreu só e desamparado, em Macau, no dia 1 de Março de 1926. [J.M.]
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Data de atualização: 2022/11/03