Fernão Mendes Pinto é sobretudo conhecido pela Peregrinação, título abreviado da famosa obra que, mesmo antes da sua publicação, em 1614, suscitou larga polémica sobre a veracidade ou invenção das aventuras contadas. Mas Fernão Mendes Pinto interessa-nos também como autor da carta endereçada de Macau ao Padre Baltasar Dias, reitor da Companhiade Jesus em Goa, com data de 20 de Novembro de 1555, que constitui o primeiro documento conhecido que nomeia esse lugar onde, após vários fracassos em terras da China, o estabelecimento dos portugueses, à data ainda precário, se tornará duradoiro por quase cinco séculos A carta de Fernão Mendes Pinto, escrita no período em que pertenceu à Companhia de Jesus, integra o caudal de correspondência que, desde a origem da Ordem, os jesuítas mantinham entre os irmãos e os seus superiores. Inácio de Loyola, fundador da Companhia, ordenara a elaboração destas cartas que seguiam a hierarquia e eram enviadas pelos irmãos aos reitores, destes aos provinciais que, por sua vez, escreviam um relatório anual para Roma. No caso da Província do Oriente, as cartas chegavam primeiro a Portugal onde eram feitas cópias para o destino último. A curiosidade pelos lugares distantes de onde eram remetidas decidiu Loyola a publicá-las, primeiro isoladamente, e depois em colecções cuja popularidade foi enorme e justificou a sua difusão em diversas línguas europeias. A carta endereçada de Macau trata da acção missionária no ano de 1555 num relato circunstanciado e cheio de comentários que reconhecemos na Peregrinação: a estadia e partida de Malaca, os sofrimentos da viagem, as tentativas frustradas pelas tempestades para alcançar o Japão, a emocionada missa em Shangchuan 上川 junto da campa do Padre Francisco Xavier, o estabelecimento português de Lampacau (Langbai’ao 浪白澳) com o movimento de navios e fazendas, e, por fim, a chegada a Macau e encontro com Padre Melchior Carneiro que regressa de Cantão onde fora resgatar um dos portugueses cativos. São muito escassas as informações sobre Macau – “este Macau” – praticamente restritas à situação geográfica: a seis léguas de Lampa cau e perto de Cantão. Mas a estadia de Fernão Mendes Pinto neste lugar onde encontra disponibilidade para escrever a carta anual, assim como o encontro com Padre Melchior, constituem indícios de uma presença que excede a mera passagem. Por isso se estranha que Macau esteja omisso na Peregrinação já que o autor faz a detalhada crónica das deambulações orientais. A carta escrita em Macau, bem como outra remetida de Malaca com data de 5 de Dezembro de 1554, pertencem ao breve período em que pertenceu à Companhia de Jesus o que também não consta da Peregrinação. Trata-se de um silêncio que continua a suscitar debate crítico quer pelas condições de publicação do relato de Fernão Mendes Pinto, trinta anos depois da sua morte, quer pela escassez de documento se sobretudo do manuscrito, que fazem da Peregrinação a principal fonte de informação sobre o autor e o seu pensamento. Nos capítulos de abertura e fecho consta que o Fernão Mendes Pinto parte para a Índia em 11 de Março de 1537 e regressa 21 anos depois, em 22 de Setembro de 1558: são as inúmeras aventura se percursos pelas partes do Oriente que constituema matéria do relato escrito após o regresso a Portugal quando se recolhe na sua quinta do Pragal perto de Lisboa. Infere-se que a obra terá sido elaborada entre 1560 e 1580, visto que dispomos de testemunhos, como o autor da versão castelhana, Herrera Maldonado, que referem ter visto o manuscrito pouco tempo antes da morte de Fernão Mendes Pinto em 1583. Apesar da escassez de esclarecimentos sobre as razões que levaram ao adiamento da publicação, duas têm sido sugeridas: por um lado, o estado em que se encontrava o manuscrito sem divisão de capítulos que facilitasse a compreensão e leitura de tão vasto relato; por outro lado, alguma má vontade do Tribunal do Santo Ofício que, apesar dos bons préstimos de Fernão Mendes Pinto ao Padre Francisco Xavier, não ultrapassara a desconfiança contra o autor que, de forma mal esclarecida, abandona a Companhia de Jesus para onde havia entrado num impulso de fé, depois de uma vida aventureira e de muitos excessos. Sem que haja outras provas desta mal querença que não seja ter sido riscado o seu nome da lista dos irmãos jesuítas do Oriente, tem sido lugar comum da exegese da obra considerar a possibilidade de ela estar truncada por imposição ou aconselhamento da Mesa Censória, ou até por livre iniciativa de Francisco de Andrada, o cronista do Rei Filipe II que se encarregou da organização em capítulos. Se a obra se apresenta como um extenso emaranhado de 226 capítulos, existe uma intencionalidade que conduz a subtil articulação dos episódios dada pela consciência do narrador como transparece no primeiro e último capítulos. É nessa abertura e fecho da narrativa que ressalta o sentido religioso e reflexivo da Peregrinação visto que, além da revisitação dos lugares, o sujeito percorre a sua consciência, percurso atribulado que o fará partirem busca de riqueza para regressar vinte e um anos depois, alterado e outro, percebendo os perigos da cupidez que não se cansará de denunciar ao longo do relato. No capítulo inicial, encontramos a dualidade fundamental que conduz o movimento da escrita: oscila-se entre o relato dos trabalhos e infortúnios que fazem queixar o narrador da má sorte, e a consciência de que foram os seus pecados que o conduziram a tais sofrimentos. Por outro lado, está aí expressa a atitude reflexiva que consiste em pôr “diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos”, criando um efeito de distância que lhe permite avaliar e seleccionar o que viveu sendo também essa distância o interstício fundamental por onde circula a ficção. Não pretendemos escamotear a parte de “invenção” que a narrativa contém e as deliberadas ficções de Fernão Mendes Pinto, mas tendo em conta a orientação predominante da crítica ao longo de séculos, julgamos necessário salientar que, mais do que “mentiras”, é o olhar de uma época que aqui se encontra representado, além de que também a crítica tem sido determinadapelo seu tempo, julgando invenção aquilo que a investigação histórica vem provar ser verdadeiro. A Peregrinação é, assim, uma obra do seu tempo na grande admiração que revela pelos novos mundos descobertos. As longas descrições de lugares e gentes satisfaziam a curiosidade dos leitores que por este meio viajavam até inacessíveis lugares. É decerto a China que maior deslumbramento causa em Fernão Mendes Pinto à semelhança de outros relatos contemporâneos. Apesar da diferença de religiões e apesar das difíceis condições dos primeiros viajantes portuguese sque acabam cativos, as suas descrições projectam a imagem de uma China modelar que é expressão da capacidade de realização humana. Nesse sentido, a China consubstancia o país de felicidade imaginado na Utopia de Thomas More e demonstra o ideal renascentista de uma ordem constituída pelo homem e para o homem. Apesar das dificuldades que o narrador e seus companheiros experimentam na subida do rio, a caminho de Pequim (Beijing 北京), não deixam de se deslumbrar perante a obra do homem: muralhas, tribunais, hospedarias, campos lavrados, protecção dos pobres e enfermos, além dos propósitos de justiça que se apresentam como inversão utópica do desmandado mundo europeu. Existem dúvidas sobre a viagem de Fernão Mendes Pinto a Pequim (Beijing北京), tratando-se de um episódio com informações difíceis de comprovar. Contudo, para além das histórias que inventou, leu ou ouviu, a subida do rio Betampina a caminho de Pequim (Beijing 北京) revela uma intensa admiração pela China enquanto modelo de reino justo e próspero, o que contribuiu para exacerbar a curiosidade dos leitores europeus e serviu o êxito do relato. Logo após a publicação, em 1614, a obra conhece um enorme sucesso que se manterá ao longo do século XVII sendo traduzida nas principais línguas europeias: em 1620 aparece em castelhano, com reedições no mesmo ano e em 1627, 1645, e 1664; em 1628 é editada em francês com reedição em 1645; em 1652 surge uma edição parcial em holandês reeditada em 1653: no mesmo ano publica-se em inglês com reedição em 1663 e 1692; em 1671 em alemão aparecendo duas reedições no mesmo ano. A rápida difusão da obra demonstra o apreço do público por esta narrativa que era lida como romance de aventuras ao gosto da época, em vez do relato autobiográfico que o autor insiste em comprovar e a leitura crítica em desafiar. [A.P.L.]
Bibliografia: CATZ, Rebecca (org.), Cartas de Fernão Mendes Pinto e outros Documentos, (Lisboa, 1983); Peregrinação, Lello& Irmão Editores, (Porto, 1984); Peregrinação, 2 vols., Relógio d’Água, (Lisboa, 2001); A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, 3 vols., (Tóquio, 1979-80); LAS PEREGRINACIONES/Adonde se escriben muchas y extrañas cosas/ que vio y oió en losReinos de China, /Tartaria, Sornao, que vulgarmente se llama/Siam, Calamiñan, Pegú, Martarban y otros muchos de aquellaspartes Orientales, / de que/ en estas nuestras de Occidente/ hay muypoca o ninguna noticia./Según la traducción del Licenciado/Francisco Herrera Maldonado, / canónigo de la Santa Iglesia Real de Arbas, / publicada en 1620, revisada y completada/por José Agustin Mahieu. (Madrid, 1982); CATZ, RebeccaD. (ed.), The Travels of Mendes Pinto, (Chicago, 1989); Pérégrination. Récit de Voyage, (Paris: 1991); Pelgrimreis Fernão Mendes Pinto, (Baarn: de Prom, 1992); [Peregrinação. Fernão Mendes Pinto], 2 vols., (Macau, 1999).

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Data de atualização: 2022/11/03