No panorama historiográfico de Macau, existe uma figura quase lendária, que tem feito correr muita tinta ao longo dos séculos. Trata-se de Tchang-Si-Lao, alvo de repetidas tentativas de identificação de vários estudiosos, tanto chineses, como ocidentais, por se tratar de uma personagem central das versões de “Combate a Piratas” que estariam na origem de Macau, enquanto concessão ou doação do imperador chinês aos portugueses. Os historiadores chineses têm concentrado todos os seus esforços em tentar provar que tal Tchang- Si-Lao nunca existiu na História chinesa, enquanto os portugueses têm insistido nesta versão. Trata-se de duas posições antagónicas em relação à génese de Macau portuguesa. É este um dos maiores mistérios, senão o maior, da História e da historiografia de Macau e do Império Português. Foram sugeridas as formas de Zheng Zhilong 鄭芝龍 (Anders Ljungstedt) e Tchen-Sin-Lao 陳星老 (Henri Bernard) para a sua identificação, mas a maioria dos historiadores, dos quais podemos citar Fujita Toyohachi, Li Changfu 李 長傅 e Zhang Weihua 張維華, entre outros, inclinam- se a identificar Tchang-Si-Lao com Zhang Lian 張璉. Paul Pelliot, citando uma fonte portuguesa seiscentista, destacou a diferença entre as fontes chinesas e portuguesas. Todas as versões são fortemente contestadas por um historiador chinês, de nome Dai Yixuan 戴裔煊 . Veja-se como é que surgiram as grafias de Tchang-Si-Lao. Foi o missionário Louis Buglio quem apresentou pela primeira vez, em 1665, no seu livro redigido em Chinês e intitulado Budeyibian [Refuto, pois Sou Obrigado a Fazê-lo], a grafia de Tchang-Si- Lao em língua sina. Quem apresentou a sua correspondente grafia ocidental, concretamente em francês, foi o Padre Moyriac de Mailla, em “Second Lettre du Pere de Mailla, Missionnaire de la Compagnie de Jesus: Au Pere de Colonia de la même Compagnie, a Pekin le 5, Juin 1717”. As versões do Padre Moyriac de Mailla, de J. B. du Hade, de Juan de la Concepcion, do irmão coadjutor Domingos Lu, de Simone Kiong, S.J. e de Zhang Xinglang, são baseadas na versão de Louis Buglio. O nome apresentado por Louis Buglio e a identificação de Simone Kiong, S.J. apenas diferem num carácter chinês. De facto, xi 西 (Oeste) e si 四 (quatro) têm as suas grafias muito semelhantes. Aliás, mesmo foneticamente, xi 西 difere muito pouco de si 四. Efectivamente, a versão do século XIX é uma reprodução, não de todo fiel, da versão seiscentista, sobretudo levando em consideração o facto de que ambos pertencem à mesma ordem religiosa. Os investigadores chineses preferem a versão de Simone Kiong, S.J., por esta corresponder a uma prática habitual entre os piratas, a qual consistia em designar as suas posições hierárquicas por uma ordem numérica, que “vai do primeiro ao décimo”. Analisando morfologicamente, o nome Tchang-Si-Lao: Tchang (Zhang 張) é um apelido muito corrente na China, Si 四 (quatro) e Lao 老 (velho, no sentido de chefe). Assim, temos em Português: Chefe Zhang, o Quarto. Seria o número 4 de um bando de piratas ou o quarto dos irmãos Zhang 張. Tchang-Si-Lao é a figura principal das sobejamente conhecidas versões de “Combate a Piratas”, que serviram de justificação histórica e jurídica para a presença portuguesa em Macau. Era uma tradição, lendariamente enraizada, a qual teve muitos reflexos em autores Portugueses, ao ponto de ter sido quase institucionalizada em Macau. Nas fontes seiscentistas, o pirata era conhecido como “tiranno chimcheo (zhangzhou 漳州)” ou “Charempum Litauquien”. “Charempum” é uma deturpação de Zeng Yiben 曾一本 e “Litauqiem”, uma aproximação a Lin Daoqian 林道乾. Zeng Yiben 曾一本 e Lin Daoqian 林道乾 foram dois piratas muito conhecidos na História da China. Quem tentou ocupar Macau foi Zeng Yiben 曾一本, que é uma figura largamente referenciada na História dos Ming 明 e nas crónicas locais. Era natural do Distrito de Zhao’an 詔安, da Prefeitura de Zhangzhou 漳州, na Província de Fujian 福建, razão pela qual, nas fontes portuguesas, aparece como “tiranno chimcheo”. Infligindo golpes duros nas forças armadas oficiais, chegou a sitiar a cidade de Cantão durante sete dias, no 2.º ano do Reinado de Longqing 隆慶 (1568). Não tendo conseguido tomar a cidade, retirou-se em direcção a Macau e tentou ocupá-la. O combate que se verificou entre o pirata e os Portugueses encontra-se documentado num memorial ao Trono apresentado por Chen Wude 陳吾 德, Secretário Inspector da Secção das Obras Públicas, de que passamos a citar algumas passagens: “Consegui apurar, mediante investigações, que os grandes piratas nos últimos anos andam a provocar-nos imensos desastres, enquanto os bárbaros que vivem promiscuamente a ocupar (Macau), constituem um problema muito mais preocupante. Os bárbaros e os de Malaca, são, por temperamento, bravos, cujas armas de fogo são ainda melhores do que as de Wokou 倭寇 (piratas japoneses). O ano passado (1568), o pirata Zeng Yiben 曾一本 chefiou um assalto contra eles, que mal chegavam a mil homens. Como os assaltantes sofreram muitas baixas, desistiram da sua intenção inicial e fugiram para longe, o que bem mostra a bravura deles (Folangji 佛朗機)”. Este documento, cuja apresentação ao Imperador se verificou em 1569, é contemporâneo do acontecimento, enquanto que o texto português de Lourenço Carvalho, de 1613, não é testemunhal. Daí as diferenças existentes entre as duas versões. Resumindo, podem-se tirar várias conclusões: aquando do ataque de Zeng Yiben 曾一本 a Macau, os portugueses já se encontravam estabelecidos há 11 anos, se aceitarmos o ano de 1557 como a data oficial da abertura de Macau. De facto, houve conflitos armados entre os portugueses e Zeng Yiben 曾一本, não porque os portugueses tenham sido requisitados pelos mandarins para combater o pirata, mas porque tinham que defender um estabelecimento português incipiente, pelo que se pode afirmar que este combate não esteve relacionado com a doação ou concessão de Macau pelo Imperador chinês aos portugueses. Para tentar estabelecer a identificação de Tchang-Si-Lao, começaremos por transcrever um excerto de um memorial ao Trono, da autoria do Grande Coordenador dos Dois Guangs 廣 dessa altura, Wu Guifang 吳桂芳, o “Memorial ao Trono Solicitando a Autorização para a Criação de Bases Navais”: “Agora, o pirata Wu Ping 吳平, embora tenha sido derrotado, existem as mais variadas versões sobre o seu paradeiro. Não se pode confiar no que dizem por aí. Zeng Sanlao 曾三老, um sobrevivente deste bando, tornou a Chaozhou 潮州, por onde anda a assaltar aldeias e chegou mesmo a incendiar barcos militares de Fujian 福建, pelo que este vosso indigno vassalo, após consultas com os colegas, decidiu mandar o recentemente promovido Canjiang Shao Yingkui 參將邵應魁 e o reconduzido vice-Zongbing 副總 兵 Tang Kekuan 湯克寬 a combatê-lo. Tomo a liberdade de formar a seguinte opinião: a expedição chefiada pelos dois generais não passa de uma mera medida de conveniência. Conviria criar quanto antes bases navais que sejam capazes de exterminar todo e qualquer perigo que possa vir pelos mares. Caso tenhamos soldados bem espalhados pelo litoral e lorchas umas à vista das outras, a formar um bom sistema de comunicação, ao primeiro alarme, todas as bases navais acudiriam ao lugar de incidente. Mesmo havendo uma dezena de Zeng Sanlao 曾 三老, nada seria preocupante para nós. Dos que andam pelos mares, além de Zeng Sanlao 曾三老, temos ainda um tal Lin Daoqian 林道乾 e sua companhia. Se não contarmos com um bom sistema de defesa marítima e com um número suficiente de estruturas militares, apenas mantendo as fronteiras que se prolongam por milhares de li em paz com o prestígio dos dois generais destacados, mesmo conseguindo acabar com Zeng Sanlao 曾三老 e Lin Daoqian 林道乾 e sua companhia, não tardariam a aparecer outros Zeng Sanlaos 曾三老 e Lin Daoqians 林道乾 pelos mares, quando a expedição chegar ao seu fim”. Graças a este excerto bem elucidativo, conseguimos desvendar um dos maiores mistérios da historiografia da presença portuguesa na China e pôr um ponto final à polémica de Tchang-Si-Lao. Não restam dúvidas que Charempum é o mesmo que Zeng Yiben 曾一本 e Zeng Yiben 曾一本 é Zeng Sanlao 曾三老. Julgamos ser uma identificação documentada, que pode ser assim sintetizada: os três piratas Wu Ping 吳 平, Zeng Yiben 曾一本 e Lin Daoqian 林道乾 eram do mesmo grupo; os três figuram neste memorial ao Trono, de Wu Guifang 吳桂芳; só Zeng Yiben 曾一 本 aparece com o nome de Zeng Sanlao 曾三老; Zeng Sanlao 曾三老 seria alcunha ou nome de guerra de Zeng Yiben 曾一本, o que corresponde a uma prática habitual entre os piratas dessa época; foneticamente, esta identificação é perfeitamente justificável e justificada (Tchang-Si-Lao em Cantonês: Cheong Si Lôu; Zeng Sanlao 曾三老 em Cantonês: Châng Sám Lôu). Aliás, como se vê, o Châng, tanto fonetica como graficamente, é mais aproximado às grafias Tchang ou Chang. A forma Tchang teria derivado de Châng (Zeng 曾) e não de Cheong (Zhang 張). Pode-se afirmar que Tchang-Si-Lao foi a corrupção de Zeng Sanlao (曾三 老), alcunha do pirata Zeng Yiben 曾一本. [J.G.P.]
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