O conceito de Padroado Português desenvolve-se a partir do direito de patronagem concedido pela Santa Sé em matéria de evangelização e administração eclesiástica nas regiões de descoberta e conquista ultramarinas, concretizando inicialmente formas canónicas de recompensar a actividade de benemerência e investimento religiosos que“patronos” ou “padroeiros” portugueses, geralmente ligados à Coroa e à família régia, dirigiram para a missionação, apoio a religiosos ou edificação de igrejas e outros espaços de culto nos primeiros espaços de expansão atlântica e africana. Originalmente, este direito de jus patronatus começa por ser doado à ordem de Cristo, especialmente no duplo contexto das conquistas no Norte de África e do desenvolvimento dos descobrimentos henriquinos, mas a posterior direcção e“nacionalização” régias dessa poderosa instituição religiosa passaria a integrar sucessivamente esses direitos na ordem da justificação canónico-política da expansão portuguesa. Numerosos textos legais e uma colecção significativa de bulas papais escritos entre 1418 e 1690 desenharam e especializaram tanto os privilégios como as dúvidas do Padroado Português na África, no Brasil e na Ásia, direitos que se foram ampliando e modificando em diferentes papados, recolhendo já complexos jogos de relações diplomáticas, já variados interesses religiosos e políticos. A noção mais concreta de Padroado Português do Oriente organiza a colecção dos direitos de patronagem atribuídos e apropriados pela Coroa portuguesa aplicados ao que se designava oficialmente por Estado da Índia, estendendo-se demoradamente desde o cabo da Boa Esperança até ao Japão, reunindo diferentes enclaves e colónias em que se concretizavam formas diferenciadas de soberania epresença comercial portuguesa. Analisando selectivamente este imenso corpus canónico de evidente expressão política, destaque-se que um dos mais importantes privilégios utilizados pela Coroa portuguesa no financiamento e apoio a actividades religiosas e eclesiásticas na Ásia era a prescrição papal obrigando todo o missionário que se dirigisse à Índia a sair de Lisboa a bordo de um navio português com autorização explícita das autoridades régias, princípio que reunia vária documentação pontifícia a partir ainda da evocação recorrente dos direitos definidos pela célebre bula Romanus Pontifex, de 1455. Estes direitos concorrem para explicar as diferentes audiências que, sobretudo ao longo do século XVI, os monarcas portugueses foram concedendo aos grupos de missionários que, dominados maioritariamente pela militância da Companhia de Jesus, se dirigiam para a geografia das missões asiáticas, expressando modalidades práticas tanto de reconhecimento do Padroado Português como da sua representação régia. Mais fundamental na organização dos direitos de Padroado nos espaços orientais se mostrava o direito da Coroa portuguesa a nomear ou confirmar os apontamentos para os bispados vacantes e outros ofícios eclesiásticos superiores na Ásia, a partir do desmembramento da vasta jurisdição ultramarina acometida apostolicamente à diocese do Funchal, depois vazada na diocese de Goa, criada de facto em 1534, para depois se multiplicar por outros territórios diocesanos de presença colonial portuguesa na Ásia. A acumulação destes diferentes privilégios e direitos foi gerando um verdadeiro monopólio na esfera religiosa e eclesiástica que complementava a dominação comercial e, nalguns pequenos espaços, soberana da presença portuguesa em territórios asiáticos, demoradamente invocando em termos oficiais essa ordem da exclusividadede um Padroado religioso que, formalmente, apenas se extinguiria no século XIX. A concretização a partir do terço final de Quinhentos de interesses territoriais coloniais e comerciais espanhóis nas Filipinas viria a constituir um primeiro desafio ao monopólio religioso português, recusando-se os missionários espanhóis a aceitar o Padroado Português nos territórios em torno do mar da China. Subitamente, Manila começava mesmo a tentar rivalizar com Macau no desenvolvimento das missões religiosas do Extremo Oriente, tomando nomeadamente a forma de oposição frontal de várias ordens religiosas das Filipinas aos jesuítas que, ancorados ao enclave macaense, dominavam os esforços missionários que se dirigiam para a China e o Japão. Uma conflitualidade que haveria de suscitar a intervenção prudente do primeiro rei da monarquia dual, Filipe II, obrigado em 1595 a proibir os religiosos das Filipinas de missionar na China e no Japão, reservando estes territórios de missão aos jesuítas do Padroado Português, apesar de acrescentar com algum significado que, se fosse necessário mobilizarmais missionários, a excepção deveria contemplar os franciscanos capuchos de Malaca. No entanto, estas ordens régias não produziam mais efeitos do que aquelas que proibiam o comércio entre Manila e Macau. À semelhança do florescente comércio ilegal, atraindo mercadores privados com a anuência das muito “autónomas” autoridades portuguesas de Macau, eram também numerosos os religiosos que se deslocavam nestes espaços. Ainda em 1596, o bispo residente em Macau, D. Pedro Martins, protestava contra a actividade de oito menores espanhóis que missionavam activamente no Japão, arrolando-se nas décadas seguintes muitos protestos semelhantes produzidos tanto por autoridades eclesiásticas como civis portuguesas. Estas posições não foram suficientemente impressivas para impedir que o papa Paulo V, em 1608, publicasse o breve Sedis Apostolicae Providentia, acabando com qualquer limitação nas vias europeias e itinerários marítimos de acesso às missões asiáticas. As relações difíceis entre religiosos de várias ordens organizadas, dos agostinhos aos mendicantes e de todos com a Companhia de Jesus, exacerbaram-se ainda mais após as perseguições dos poderes nipónicos reunidos em torno da forte autoridade de Toyotomi Hideyoshi inauguradas com os grandes massacres de 1597 com cada um dos diferentes ramos missionários da Igreja romana a acusar o outro de ter provocado as violentas perseguições. Acusações que se podem frequentar, entre muitas outras, nas missivas que o jesuíta D. Afonso Mendes, Patriarca da Etiópia, escreveu de Goa cerca de 1640 ao colégio da Propaganda Fide, recriminando os religiosos de outras ordens de arruinarem a missão da China como haviam feito no Japão. Estas acusações receberam comprometidamente o apoio das autoridades coloniais do chamado Estado da Índia que, pese embora algumas particularidades circunstanciais, apoiavam geralmente os jesuítas, convocando a sua actividade missionária no quadro dos direitos do Padroado Português como uma dimensão importante das formas religiosas que expressavam a soberania portuguesa em territórios asiáticos. Neste período, porém, a Santa Sé havia já transformado a Comissão pontifícia encarregadada missionação, organizada em 1572 sem grande expressão, numa sagrada Congregação que, a partir de 1622, receberia do papa Gregório XV essa existência jurídica reconhecida como Propaganda Fide. Neste novo contexto, em seguida, a oposição ao monopólio religioso português veio dos missionários franceses nomeados pelo papado, desde 1658, para vicariatos orientais e financiados por Luís XIV para multiplicarem actividades missionárias na Ásia no quadro da nova Socitété des Missions Étrangères de Paris. A maioria dos missionários partia em barcos franceses e mostrou-se praticamente impossível às autoridades portuguesas impedir o seu desembarque em Cantão e, muito menos, a sua rápida disseminação por muitos espaços que se organizavam debaixo dessa representação geográfica e cultural intitulada Cochinchina. A recorrente intransigência da Coroa portuguesa e dos seus representantes coloniais na Ásia em defender a exclusividade do Padroado expressou-se em várias manifestações de força, como esta que permitiu ao governador de Macau, em 1686, prender alguns missionários espanhóis das Filipinas no seu caminho para o actual Camboja. Muito mais grave e séria viria a ser a prisão do legado papal, Charles Maillard de Tournon, Patriarca de Antioquia, após o seu retorno de Pequim (Beijing北京) em 1707 quando procurava congregar adesões religiosas locais às condenações papais dos chamadosritos chineses tolerados pela casuística e praxis missionária dos jesuítas. Recorde-se que, contrariando em termos formais e institucionais o monopólio religioso do Padroado Português, a história missionária e eclesiásticado catolicismo na China altera as suas primeiras formas administrativas diocesanas nos finais do século XVII, quando a Santa Sé decide dividir os movimentos, pessoal e equipamentos religiosos que se organizavam como “Missão da China” em três grandes dioceses: Pequim (Beijing 北京), Nanjing 南京 e Macau. O novo bispado especializado para o enclave português do delta do rio das Pérolas passava a cumprir uma jurisdição “limitada” às províncias de Guangdong 廣東 e Guangxi 廣西, diminuindo tanto a extensão da sua vocação missionária como as fronteiras eclesiais diocesanas oferecidas ao extenso território imperial chinês. Como se sabe, em termos estritamente eclesiológicos, é apenas neste período que se formaliza a nomeação do primeiro bispo exclusivamente de Macau na figura importante de D. João do Casal, personalidade dinâmica que não deixaria de procurar defender as prerrogativas cada vez mais infirmadas dos direitos do Padroado Português no Oriente. Convocando precisamente estes privilégios, o prelado macaense haveria de se opor duramente ao enviado papal Charles Maillard de Tournon que, entrando em Macau em 1705, vinha encarregado desse esforço de obrigar a Igreja local e os diferentes cenóbios religiosos a cumprirem a condenação papal dos chamados ritos chineses, geralmente entendidos como uma colecção oficialde ritos “confucianos” ligados, duplamente, à celebraçãodos cultos funerários tradicionais dos antepassado se à exornação ritual da figura do imperador enquanto sacralização do seu poder. A questão haveria de dividir o céu religioso macaense, concluindo-se, em 1711, um ano depois do falecimento em Macau do enviado papal, com a deportação de D. João do Casal para a Índia, ao mesmo tempo que o rei de Portugal D. João V entenderia recompensar generosamente a casa dos agostinhos macaenses pelo apoio dado ao legado apostólico, o que não deixava de representar um evidente reconhecimento da superioridade das prerrogativas pontifícias e das suas enviaturas às missões e espaços católicos asiáticos. Apesar da oposição dos jesuítas e do imperador Kwangxi (Kangxi 康熙), o Papa continuou a tentar impor a condenação dos ritos chineses, denunciados com violência através da Bula Ex illa die, publicada em Roma, em Março de 1715, para chegar a Guangzhou 廣州 e Pequim (Beijing 北京) em Agosto e Novembro do ano seguinte. Em Macau, as renovadas condenações pontifícias divulgam-se com a chegada de novo legado papal, Carlo Ambrogio Mezzabarba, Patriarca de Alexandria, solenemente recebido em 25 de Março de 1720. Avisado pela conflitualidade que rodeara a missão difícil do seu antecessor, Mezzabarba navega para o Oriente saindo prudentemente de Lisboa, em barco português e com autorização da Coroa, como impunha a casuística documentalmente complexa e enredada dos direitos do Padroado Português. Após nove dias de contactos em Macau, o enviado da cúria pontifícia dirige-se a Cantão e, em seguida, a Pequim (Beijing 北京), procurando alcançar a corte do “Filho do Céu”. Consegue concretizar uma audiência com o velho imperador Kwangxi (Kangxi 康熙), mas o encontro não pareceter deixado quaisquer impressões favoráveis nos meios imperiais chineses. Com efeito, após ouvir os argumentos da enviatura e escutar a leitura da tradução da bula Ex illa die, o imperador tratou de esclarecer sentenciosamente serem os europeus tão limitados mentalmente que se encontravam incapazes de aceder à compreensão da profundidade da filosofia confuciana. Se continuarmos a seguir a reconstrução – provavelmente mais representacional do que real – deste debate cortesão imperial, sublinha-se ainda que o grande monarca chinês terá mesmo concluído a audiência oferecida a Carlo Mezzabarba comparando os diferentes missionários católicos romanos aos supersticiosos sacerdotes budistas e taoístas. Depois deste insucesso, contrariado também pela qualidade da treinada argumentação jesuíta em defesa dos ritos chineses, o legado papal acabaria apenas por editar uma instrução equívoca que, difundida em 4 Novembro de 1721, permitia aos missionários da Companhia de Jesus praticamente ignorar as obrigações pontifícias. De qualquer forma, a acção do legado papal em Macau concorreu para aplacar divisões e restaurar conciliações entre os diferentes agentes locais da missionação católica, permitindo mesmo o trabalho religioso do procurador geral da Propaganda Fide. Por isso, ao encerrar a sua enviatura, o patriarca Carlo Mezzabarba conseguiu recolher os restos mortais do seu agitado antecessor, depois devidamente inumados na casa romana da Propaganda. Ao longo do século XVIII e ainda nas primeiras décadas de Oitocentos, alguns poderes eclesiásticos e políticos coloniais portugueses em Macau continuaram ainda, conquanto cada vez mais esparsamente, a convocar os direitos do Padroado contra outras missões religiosas que, apoiadas pela Propaganda Fide, sustentavam a multiplicação da concorrência política e comercial europeia nos mares do Sul da China. Assim, em 1777, o bispo da diocese de Macau, D. Alexandre da Silva Pedrosa Guimarães, continuava a negar direito de passagem pela cidade aos missionários estrangeiros que não jurassem fidelidade ao monarca português. Ainda no segundo quartel do século XIX, o governador Sousa Soares exigia que abandonassem Macau todos os procuradores da Propaganda Fide e missionários que residissem no território sem terem viajado a partir de Lisboa e jurado obediência ao Padroado português. Apesar da procuradoria da Propaganda ter deixado Macau na década de 1840, o conflito que foi opondo a Coroa portuguesa e o papado viria a ser definitivamente dirimido já tardiamente quando, em 1857, com a concordata assinada entre Portugal e a Santa Sé, se extinguia formalmente a noção e os direitos do Padroado Português no Oriente. [I.C.S.]
Bibliografia: ARAÚJO, Horácio Peixoto de, Os Jesuítas noImpério da China. O Primeiro Século (1582-1680), (Macau,2000); REGO, António da Silva, O Padroado Português no Oriente, (Lisboa, 1940); VALE, A. M. Martins do, Entre a Cruz e o Dragão. O Padroado Português na China no século XVIII,(Lisboa, 2002).

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Data de atualização: 2023/05/17