Nome popular pelo qual foram designados os sacerdotes seculares, ou pertencentes a qualquer ordem religiosa que, no Oriente, tinham como principal missão superintender nas conversões dos indígenas, protegendo os seus interesses morais e materiais, instruindo-os nos princípios da fé cristã, acompanhando-os na sua educação e corrigindo-os quando fosse caso disso. Segundo alguns autores, esta designação pode ter uma origem navarro-aragonesa, pois, nessa região o magistrado responsável pelos órfãos (o correspondente ao juiz dos órfãos dos concelhos portugueses) era designado por “padre de huerfanos”. Esta instituição aparece documentada, pela primeira vez, ainda de forma informal, em Goa, em 1537, quando Rui Barbudo “em nome e como administrador de todos os cristãos da terra” apresentou à Câmara de Goa uma petição. Oficialmente, o cargo de “Pai dos Cristãos” terá sido instituído em 1541, como um dos instrumentos criados pelo Estado português (a par, por exemplo, da Inquisição, criada em 1560) para dar continuidade e reforçar uma nova atitude expansionista de carácter mais autoritário e centralizado, na qual a afirmação do poder político e a expansão religiosa aparecem associadas e como faces de uma mesma moeda, e que veio quebrar a anterior, politicamente menos centralizada e religiosamente mais tolerante. Apesar da sua ligação à Igreja e do cargo ter sido sobretudo desempenhado por religiosos (entre 1557 e a expulsão dos Jesuítas, em 1759, o cargo foi desempenhado, quase sempre, por religiosos desta Ordem), tratava-se de uma instituição laica e do Estado tendo o título passado, por provisão do vice-rei, a constituir um cargo oficial, com “soldo e vencimento” (o ordenado estabelecido, em inícios doséculo XVII, rodava os 60.000 réis anuais), tendo o “Paidos Cristãos” o dever de julgar as causas cíveis “até à quantia de cinquenta xerafins”, e as causas crimes emque “haja injúrias verbais e pancadas que não cheguem a tirar sangue”. O extenso âmbito das responsabilidades e jurisdição do cargo levou à instituição de um “Pai dos Cristãos” em cada uma das cidades ou fortalezas-feitorias do império português do oriente como Baçaim, Taná, Chaúl, Damão, Goa, Cochim, Ceilão, Ormuz, Malaca e Macau. Para além da grande influência que o“Pai dos Cristãos” tinha sobre toda a estrutura religiosa do Oriente, este cargo permitia ainda receber somas avultadas, pois a sua presença ou autorização do titular deste cargo era necessária em todos os actos do culto, e nomeadamente, nos enterramentos, ofícios de defuntos e nos inventários dos bens dos finados. Dele dependia ainda a concessão de inúmeros cargos aos “cristãos da terra” como é bem claro numa provisão de 1619 naqual se afirma: “[…]que os ofícios que se costumam na Índia a dar aos cristãos da terra, se provejam precedendo informação do Pai dos cristãos (…)”. Até hoje conhecem-se apenas dois manuais do Pai dos Cristãos, procedentes dos Jesuítas de Goa que foram continuados, depois da expulsão destes dos territórios portugueses, por sacerdotes seculares e de outras ordens. Segundo a edição crítica anotada de José Wicki S.J. (1969), a maior parte de um desses manuais, com o título, Provisões a favor da Cristandade (Livro do Pai dos Cristãos), terá sido escrita cerca de 1670, ou um pouco mais tarde, conjunto ao qual foram sendo acrescentados outros textos, sendo o último de 1821. O outro texto, denominado Leis a favor da Cristandade, é menos extenso. Ambos parecem ser cópia do mesmo manuscrito original.Este texto compila e acrescenta as leis existentes passadas em favor da Cristandade. O interesse demonstrado pelo poder político central e local (uma vez que a documentação aqui reproduzida é oriunda de “Reis, Rainhas, Regentes, Vice-Reis e Governadores de Portugale da Índia, chanceleres, secretários de Estado, desembargadores, ouvidores, etc. – não falando do exército de oficiais menores e escrivães”), em reforçar o carácter proselitista da expansão arranca no reinado de D. João III e irá manter-se durante o domínio dos Filipes. No Livro do “Pai dos Cristãos” pode ler-se: “Quanto ao ofício do pai dos cristãos consiste principalmente em três coisas, scilicet, a uma do que toca às coisas da conversão, a outra do que faz pêra ensino dos catecúmenos, seu provimento e baptismos, e a outra do amparo e remédio dos novamente convertidos. Quanto ao primeiro, da conversão dos infiéis, como ela nestas partes da Índia não seja comummente por pregação e doutrina, mas por outros meios justos, como de lhe impedirem suas idolatrias e de os castigar justamente por elas, e lhes negar os favores que justamente se lhe podem negar e os dar aos novamente convertidos, e de honrar, ajudar, amparar a estes pêra que os outros com isso se convertam, fará o Pai dos cristãos muito porque nenhum meio deste(s) se lhe passe de que se não aproveite e ajuda para a conversão dos infiéis”. Torna-se claro, a partir deste texto, que neste período se entendia a conversão como algo que não dependia da vontade individual, mas de uma política intolerante e coerciva que obrigava todos, mesmo aqueles que não se sentiam inclinados a mudar de religião e a aderir ao Cristianismo.Para isso foram utilizados todos os meios possíveis, desde o apoio aos convertidos, à destruição dos pagodes e mesquitas e proibição de novos templos de culto não católico, até à expulsão dos territórios dominados pelos portugueses, dos que recusavam converter-se. O “Pai dos Cristãos” devia, por isso, ter um bom conhecimento das leis existentes em favor da Cristandade, a fim de poder aplicar aos novos convertidos os numerosos privilégios, cujo objectivo era não só privilegiar os convertidos, mas também, propedeuticamente, criar condições que levassem as populações gentias a“desejarem” juntar-se ao grupo dos cristãos. Para além dos aspectos religiosos e pedagógicos, outro aspecto importante da actividade do “Pai dos Cristãos” prendia-se com a sua jurisdição sobre os novos convertidos. A conversão ao Cristianismo constituía um princípio de assimilação jurídica, nomeadamente quando o direito português estabelecia regimes mais favoráveis ao convertido ou que o pusessem a salvo das pressões (económicas ou outras) por parte da comunidade indígena. Assim, por exemplo, quanto ao regime de bens do casamento ou ao regime sucessório, a legislação portuguesa, editada na Índia nos meados do século XVI, mandava aplicar às mulheres casadas que se convertessem o regime de meação nos bens do casal, e garantia aos filhos convertidos a herança de seus pais, avós e parentes, mandando entregar-lhes, logo no momento do baptismo e mesmo em vida dos pais, a “terça” portuguesa nos bens a herdar. A Coroa autorizou ainda a entregadas heranças vacantes segundo o direito gentio às filhas ou mulher, desde que cristãs. Acresciam a estas disposições uma série de privilégios estatutários, como a concessão da liberdade ao escravo de infiéis que se convertesse– mais tarde este privilégio foi revogado e determinou-se que os escravos de infiéis que se convertessem não fossem libertados mas, tão somente, vendidos acristãos; fiscais, como a isenção do pagamento do dízimo por quinze anos, ou a redução dos direitos alfandegários, como acontecia em Malaca; administrativos; ejudiciais. Assim, as pequenas questões entre convertidos deviam ser julgadas oralmente, sem delongas e formalidades, por juízes portugueses, normalmente eclesiásticos, atribuindo-se frequentemente aos mordomos das freguesias ou das confrarias competência jurisdicional sobre gentios e cristãos em causas de valor diminuto. Em Macau, a existência do “Pai dos Cristãos” surge referida em alguns documentos. Sem sermos exaustivos temos conhecimento de uma petição, apresentada em 2 de Dezembro de 1644, pelos cristãos da China, reivindicando os mesmos privilégios que os da Índia; em 1715, o “Pai dos Cristãos” (no caso, o Bispo de Macau) proibiu, a compra de escravas e o envio de mui chai (escravas chinesas) de Macau para Goa ou para outro lugar qualquer. Mais tarde, uma carta real de 1758 ordena que não haja escravidão de chins, afastando assim uma prática que era caucionada pelo “Pai dos Cristãos” (“dos que debaixo de semelhante pretexto introduziram eestão sustentando uma escravidão geral, que ainda sendo de quarenta anos, como se está praticando e convencionando ao tempo dos baptismo[s] pelo chamado Pai dos cristãos”). [C.A.]
Bibliografia: ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja emPortugal, 4 vols., (Porto/Lisboa, 1968); AZEVEDO, Carlos Mouraria de (dir.), “Índia – Goa”, “Macau”, in Dicionário deHistória Religiosa de Portugal, 4 vols., (Lisboa, 2001); FERNANDES, Lagrange Romeu R. Fernandes, “O Pai dos Cristãos” nas Missões Portuguesas da Índia Oriental (1541-1840), texto policopiado, (Roma, 1965); “Pai dos Cristãos”, in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, (Lisboa/Rio de Janeiro); HESPANHA, António Manuel, Panorama da História Institucionale Jurídica de Macau, (Macau, 1995); WICKI, José, Livro do“Pai dos Cristãos”, ed. crítica anotada, (Lisboa, 1969); MANSO, Maria de Deus Beites, O Cristianismo na Índia: Da Difusão aoConfronto (século XVI-XVII), [em linha], (Évora, 2003), [Consult.09 Mar. 2004], disponível em: www.triplov.com/cictsul/maria_de_deus.html; PIRES, Joaquim Videira, Os Extremos Conciliam-se, (Macau, 1988).
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