Associado à mitologia e à cosmologia, o dragão, símbolo exterior e visível que melhor identifica e distingue a civilização e acultura chinesas, é o único signo que corresponde a um animal mítico (os restantes onze representam animais reais) e constitui assunto recorrente nas artes e nas letras, nos mitos, nas lendas e nos contos populares da China, país onde Macau se integra. – 1. Culto. O dragão é venerado, desde tempos imemoriais, como um dos quatro animais divinos, de parceria com o unicórnio, a fénix e a tartaruga. Constituindo o panteão dos animais divinos, os que marcam as quatro direcções daTerra, cabendo ao dragão azona Este, a do Sol nascente, das chuvas, da fertilidade. Nessa qualidade, era usado já há 5-6 mil anos, no período do neolítico chinês, em diversos utensílios, como vasos pintados e peças em laca e em jade. Acompanhou todas as dinastias, sendo tema permanente para a pintura e a poesia. A tradição mitológica chinesa refere várias espécies de dragões: o Dragão Celestial, guardião das mansões dos deuses; o Dragão Espiritual, 01que controla o vento e a chuva; o Dragão Terreno, que demarca o curso dos águas dos rios; o Dragão dos Tesouros Escondidos, que protege as riquezas; o Dragão Alado; o Dragão Anelado; o Dragão de Chifres; e o Dragão Amarelo. Por vezes aparecem subdivididos em dragões do mar, do ar e da terra, ou associados a diferentes cores. Em Macau e, em geral, em toda a China, o dragão simboliza a benevolência, a dignidade e a majestade.Trata-se, porém, de um símbolo complexo, a começar pela sua origem. Discutem os antropólogos ocidentais sobre o que terá inspirado a figura do dragão chinês. As opiniões repartem-se pelo lagarto, pela serpente, ou pelo crocodilo que, em tempos remotos, era frequente nos pantanais chineses, e que ainda aparecerá, ocasionalmente, no RioYangtze (Yangzi 揚子). Alguns associam a figura mítica do dragão na China ao culto do crocodilo no Antigo Egipto. Outros ainda, associam-no ao javali. Certo para todos é que nada tem aver com oferoz dragão da mitologia medieval do Ocidente, que normalmente incarna forças do mal. Como símbolo demoníaco, o dragão aparece identificado com a serpente, tanto no Ocidente como no Oriente. A Ocidente, esta associação é bem anterior à Idade Média, e já Orígenes (185-254) confirma tal interpretação na primitiva Igreja grega. Mas também como símbolos do ódio e do mal. Acala, o terrível Fudô nipónico, ao dominar o dragão, vence a ignorância e a obscuridade. Em
The Encyclopaedia Sinica, Samuel Couling é de opinião que, pela sua forma e aspecto, “deriva do crocodilo, outrora comum na China, que se oculta no inverno e reaparece na primavera” (pág.147). Esta interpretação destaca o simbolismo cíclico do dragão, que, elevando-se no céu no equinócio da Primavera, mergulha no abismo no equinócio do Outono. O aparecimento do dragão corresponderá à Primavera, ao aumento dos trovões, ao
yan 陽, à vida, à vegetação, à cor verde, à renovação cíclica. Na perspectiva deste autor, o dragão simbolizará sobretudo a chuva que fertiliza a terra. Associadoao trovão, ao raio e à fertilidade, cuspindo fogo e provocando chuva, adquiriu enorme importância numa civilização agrária como a chinesa. É idêntico o parecer de E.T.C. Werner, em
Myths and Legends of China,ao afirmar que o dragão controla a chuva e assegura, assim, a prosperidade e a paz. Refere ainda que na imagem do dragão chinês a pérola representa o Sol. Defacto, o culto do dragão parece também associado ao Sol, talvez namedida em que este influencia a formação das nuvens e da chuva. C. A. S. Williams, em
Outlines of Chinese Symbolism & Art Motives, apresenta uma perspectiva diferente sobre a origem deste culto, que poderá estar associado ao culto de Naga, serpente mítica presente na tradição religiosa da Índia, desde o tempo dos Vedas. De acordo com atradição budista, há lendas que referem que Naga protegeu Buda, enquanto este meditava na floresta, antes de atingir a Iluminação. Lembre-se que o Budismo atribui ao dragão predicados importantes de protector das divindades e de guardião dos templos.Também o Taoísmo lhe atribui propriedades mágicas [ o dragão é o próprioTao (Dao道), uma força total, momentaneamente revelada]. Quando, a partir da dinastia Han漢, o dragão passou a representar simbolicamente o poder imperial, tornou-se também manifesta a sua associação ao Confucionismo. Aliás, parece óbvio que, embora o culto deste animal divino seja muito anterior ao Budismo, ao Taoísmo e ao Confucionismo, não conseguiria manter-se tão profundamente enraizado na cultura chinesa, e no Oriente em geral,sem o suporte dos três. A mais antiga descoberta de uma imagem de dragão em escavações arqueológicas, representa-o com corpo de serpente, o que parece apoiar esta versão. De facto, o corpo do dragão chinês, na versão actual, assemelha-se a um réptil, embora a cabeça pareça inspirada noutro animal. Alguns arqueólogos,observando escavações de túmulos milenares, inclinam-se para um animal domesticado, familiar dos camponeses, por ser rural o mundo tradicional chinês. Cavalo? Búfalo? Porco? Camelo? Há ainda os que defendem que a imagem do dragão representa uma evolução a partir da representação do javali. Jades funerárias antigas parecem confirmar que ambos terão tido grande importância nos primitivos rituais agrários. Parece, efectivamente, um monstro complicado, o dragão chinês: com cabeça de animal não identificado, tem olhos de lebre, chifres de veado, pescoço de serpente, ventre de rã, garras de gavião, escamas de carpa, patas de tigre e orelhas de vaca. Qualquer que seja a sua origem, o dragão andava associado à ideiade uma boa administração por parte dos oficiais imperiais que controlavam as sementeiras, os canais de rega, etc., e acabou por transformar-se também em símbolo dadignidade imperial. Simbolizando inicialmente os ritmos de vida que garantem a prosperidade, a fartura e a ordem, passou a andar associado às funções da realeza e tornou-se emblema do imperador. Aliás, este simbolismo, corrente na China, aplicava-se também entre os Celtas, e já um texto hebraico se refere ao dragão celeste comoum “rei sobre oseu trono”. Mas, foi a partir da dinastia Han 漢 (206 a.C. – 220 p.C.) que o dragão passou a representar simbolicamente o poder imperial, com esta alteração aparecendo associada ao aumento do tamanho do trono imperial que se verificou na época do imperador Liu Bang 劉邦 (206a.C. – 195a.C.). O rei-dragão (
lông vóng [lon-gwang 龍王]), na sua forma divinizada, confundia-se com o imperador, também ele deificado –
o filho do Céu. A imagem do dragão transformou-se deste modo numa manifestação permanente da omnipotência imperial:
a face do dragão passou a significar a face do imperador, etc. As expressões alargavam-se a tudo quanto com ele se relacionava:
o trono do dragão, os olhos do dragão, a pena do dragão, o traje do dragão, etc.. O complexo simbolismo do dragão é ambivalente. Tal ambivalência exprime-se, em Macau, pelas imagens correntes de dois dragões frente a frente, a lembrar as serpentes do caduceu ocidental, as quais sugerem o equilíbrio por integração de forças contrárias. De facto, o caduceu, geralmente representado como um ramo de oliveira ou de loureiro, terminado em duas asas e no qual se enroscam duas serpentes, é, nos nossos dias, o emblema universal da ciência médica. Segundo uma interpretação mitológica, o caduceu é atribuído a Asclépio (ou Esculápio, na versão romana), deus da medicina, entre os gregos e os romanos, que sabia usar as poções para curar os doentes e ressuscitar os mortos. As serpentes enroladas em volta do bastão, que simbolizará a árvore da vida, significarão que a saúde resulta do equilíbrio. Equilíbrio psicossomático, também. A serpente assume assim um duplo aspecto simbólico: um, benéfico, o outro, maléfico, e o caduceu representa, se quiser, este antagonismo e este equilíbrio. Também no simbolismo do dragão a ambivalênciaé constante: é
yang 陽, como signo do trovão, da Primavera e da vida, como se referiu, e é
yin (陰), como soberano das regiões aquáticas onde mergulha no Outono, como também já se observou. Associada ao
yang 陽, simboliza o vigor masculino e a fertilidade. E será por isso que nos surge associado àfestividade do duplo
yang 陽(ou de aprovisionamento do princípio masculino): no nono dia do nono mês lunar (duplo nove) os homens subiam festivamente aos montes e embebedavam-se com vinho de flores de crisântemo. Talvez por andar associado ao elemento água, o dragão adquiriu também importância em termos de geomância [o
fông-sôi(feng shui 風水) ou “vento e água” – preocupação ainda muito viva entre a actual população de Macau]: uma das regras fundamentais é não despertar e sobretudo não enfurecer o dragão, cuja presençaos “técnicos” geomantes conseguem “ver” nas formas dos montes, dos vales e dos rios, nos detalhes das ruas e das casas. Eram e são numerosos os talismãs de monífugos com representações do dragão, pois asociedade chinesa vive da e na simbologia das coisas e dos actos e, em qualquer situação, se necessário, cria ou adapta pequenos rituais, recorrendo ao poder dos símbolos, como se este fosse mágico e automático. Deste modo, o povo, a quem primeiramente o culto dizia respeito, e a quem foi interdito o uso do dragão nove stuário ou na decoração das suas casas, continuou, porém, e até aos nossos dias, a respeitá-lo e a venerá-lo como símbolo das quatro grandes bênçãos: harmonia, virtude, prosperidade e longa vida. Hoje, o povo chinês associao dragão sobre tudo ao oculto, ao sobrenatural, à mística e ao mistério. Surge, assim, associado também aos novos movimentos religiosos que parecem de regresso à China dono vomilénio. Em Macau, os vestígios do culto do dragão são bem manifestos em três momentos altos do calendário lunar: a
dança do dragão, no início do Ano Novo Lunar, a celebração do
dragão em briagado, no 8.º dia da 4.ª lua, e as regatas dos
barcos-dragão, no 5.º dia da 5.ª lua. [A.J.G.A.]
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Myths and Legends of China, (New York, 1994); WILLIAMS, C.A.S.,
Outlines of Chinese Symbolism & Art Motives, (New York, 1976).
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